Magistradas falam sobre ser mulher na magistratura
Que a mulher é mais forte, sensível, sensata, equilibrada, tem um coração do tamanho do mundo, faz muitas coisas ao mesmo tempo, todos já sabem. Talvez por isso muitos poetas tentem traduzi-las em palavras. Impossível. Quem sabe defini-las?
O grande Manuel Bandeira até tentou, porém suas palavras não foram capazes de fazê-lo: “Como as mulheres são lindas!/ Inútil pensar que é do vestido…/ E depois não há só as bonitas:/ Há também as simpáticas./ E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto: / Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha./ Como deve ser bom gostar de uma feia!”.
E em pleno século XXI, as mulheres continuam buscando um lugar melhor na carreira e na vida, simplesmente porque ainda sofrem com o machismo – que vem de muitos lugares e apresentam-se nas situações mais inesperadas, ainda que de forma velada. Assim, no dia em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, algumas magistradas relatam tristes experiências pelas quais passaram pelo simples fato de ser mulher.
A juíza Katy Braun do Prado, da Vara da Infância, da Adolescência e do Idoso de Campo Grande, conta que a situação mais comum se dá nas audiências de tentativa de conciliação, nas quais, por diversas vezes, foi interrompida por advogados que pretendiam explicar o objeto da lide ou interrompiam-na de tal modo que ficava prejudicada a conclusão do raciocínio, em uma prática explícita do manterrupting e mansplaining.
“Para fazer cessar essa conduta é necessário ‘subir o tom’ na audiência, o que acaba por desfazer o ambiente leve e tranquilo que se procura preparar para mediar as partes. Em certa ocasião, respondi por duas varas na comarca onde estava lotada e por uma comarca vizinha por um longo período. Obviamente priorizei as questões mais urgentes, o que gerou um aumento do acervo de processos da minha própria vara. Um colega, na intenção de me auxiliar, contou que vinha pedindo às partes e advogados que tivessem paciência comigo porque afinal ‘eu era mulher e mãe’. Um conselheiro tutelar certa vez me perguntou se para ser juíza de crianças precisava de concurso público”.
Titular da 2ª Vara Cível de Dourados, a juíza Larissa Ditzel Cordeiro Amaral acredita que ser mulher, inteligente, bem-sucedida e “ter a caneta” na mão, por si só, para alguns homens, é uma afronta da qual se defendem com a ignorância típica daqueles que precisam acreditar na superioridade do gênero. “Ao longo de minha carreira experimentei inúmeros episódios desagradáveis e outros até risíveis”.
Ela conta que não tinha ainda seis meses de magistratura, na comarca de Brasilândia, quando houve um julgamento pelo Tribunal do Júri de um membro do PCC, definido pelo delegado como muito perigoso. O réu estava preso em São Paulo e foi levado com escolta para a comarca. Foi um acontecimento na cidade.
“A delegacia só tinha duas celas, mas colocaram o tal preso perigoso sozinho em uma, com medo que atentasse contra a vida ou integridade dos demais. O conselho de sentença o condenou. Enquanto lia a sentença, ele manteve a expressão irônica e debochada e quando os policiais o pegaram pelo braço para levá-lo, ele disse em voz alta: ‘A viagem valeu a pena, pois a juíza é bonita’. Nada demais, mas eu não sabia se ria ou se o enquadrava em desacato. O fato é que se o julgamento fosse conduzido por um homem, este tipo de comentário certamente não seria feito”, contou.
A juíza Thielly Dias de Alencar Pithan e Silva, da comarca de Rio Negro, acredita que a mulher demora para enxergar posturas discriminatórias em algumas situações porque estão habituadas com o machismo velado. “Li em algum lugar que uma mulher que diz nunca ter sofrido conduta discriminatória certamente está muito distraída. Achei ótimo o raciocínio porque fez muito sentido pra mim”.
A juíza Jacqueline Machado, que responde pela primeira Vara de Medidas Protetivas do país e pela Coordenadoria da Mulher em MS, pensa da mesma forma. “Explicitamente, não me lembro de xingamentos, preconceito, discriminação. Na verdade, todas nós sabemos que a mulher que afirma nunca ter sofrido assédio, preconceito, deve ser muito distraída. Todas nós mulheres, em algum momento das nossas vidas, sofremos algum tipo de violação de direito”.
Na comarca de Nova Andradina, a juíza Cristiane Biberg confidencia que, por mais de uma vez, advogados (homens) falaram com ela e pediram para falar com o “juiz”.
Ellen Priscile Xandu Kaster Franco, da 1ª Vara Cível de Nova Andradina, é outra a não ter situações específicas que a fizessem sentir-se diminuída. “Nunca me xingaram ou duvidaram de minha capacidade, pelo menos que eu tenha percebido. Algumas partes, às vezes, em sua simplicidade, me olham e acham que sou ‘novinha’, que pareço ‘uma menininha’, mas nem vejo isso como sendo digno de nota, porque nunca fui desrespeitada por advogados ou partes”.
A juíza Luiza Vieira Sá de Figueiredo acredita que não passou por situações discriminatórias no contexto da magistratura, pois não se recorda de nenhuma situação nesse sentido. “Mas sabemos que o contexto do Judiciário ainda é muito machista”, opina.
Saskia Elisabeth Schwanz, juíza da 1ª Vara de Família e Sucessões da Capital, nunca sentiu discriminação por ser mulher na magistratura. “Mesmo em momentos pontuais de uma ou outra adversidade, não me recordo de qualquer episódio que o motivo do dissabor estivesse ligado ao fato de eu ser mulher”.
Três juízas, uma da Capital e duas do interior, pediram para ter suas identidades preservadas, mas relataram dissabores. A magistrada de Campo Grande sofreu ataque pessoal e adotou providências para que o agressor fosse processado.
Uma das juízas do interior conta que no início da carreira um advogado, bem mais velho, falou uma frase antes de iniciar a audiência dando a entender que ela não julgaria direito o caso por ser nova, permitindo que ela sentisse o descaso por ser mulher, obrigando-a a se impor.
A outra, que já foi juíza em outro Estado antes de ingressar na magistratura sul-mato-grossense, conta que a disposição mobiliária de lá é diferente da de MS e, para realizar audiência, o lugar do juiz fica mais alto que o das outras pessoas, em destaque. Estava ela sentada no local destinado à magistratura para começar a audiência, quando chegou o advogado e perguntou quando o juiz ia chegar.
Apesar de todos os relatos de discriminação velada, disfarçada em situações diárias, existem vitórias como, por exemplo, a promoção por merecimento da juíza Elizabete Anache para o cargo de desembargadora do Tribunal de Justiça de MS – a primeira mulher a ser promovida por merecimento para Segundo Grau em MS. Para algumas integrantes da magistratura de Mato Grosso do Sul, esse fato é um marco no empoderamento feminino.
“Minha postura sempre foi muito firme, rígida até, ao longo da carreira. Talvez até tenha adotado essa conduta como forma de assegurar o respeito às prerrogativas do cargo. Com isso, não me recordo de ter vivenciado situações explícitas de desrespeito, discriminação ou dúvida quanto à minha capacidade de trabalho. É lógico que, muitas vezes, percebi algumas atitudes veladas: inconscientemente, as pessoas, não raras vezes, esperam encontrar na ‘cadeira do juiz’ um homem branco e de uma faixa etária restrita”, garante a Desa. Elizabete.
Ela se recorda, por exemplo, da expressão de espanto e desconfiança de advogados, partes e até dos servidores quando se dispôs a realizar uma inspeção judicial em uma área rural para instruir um processo cível. “Cuidado doutora, a senhora pode se arranhar com a vegetação. Há muitas pedras e a senhora pode cair, pois o terreno é muito íngreme”, lembra sorrindo, ao sugerir que as instituições adotem uma cultura inclusiva, que haja incentivo a atitudes não discriminatórias.