Decisão do STJ reacende a problemática sobre adoção
Por entender que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que a criança tem o direito de ser criada e educada no seio familiar, incluindo-se nesse conceito a família natural e a ampliada, os ministros da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça determinaram o processamento de uma ação de adoção personalíssima proposta por um casal que alegou ser parente da criança, por serem tios por afinidade da mãe biológica.
De acordo com o divulgado pelo STJ, o pai biológico da criança é desconhecido e ela foi entregue pela mãe ao casal logo após o nascimento, em 2018 - motivo pelo qual buscavam a regularização jurídica da situação de fato. A mãe biológica concordou com a destituição de seu poder familiar, em caráter irrevogável.
Durante o curso da ação, a criança chegou a ser recolhida em abrigo e foi objeto de várias decisões judiciais, que ora a colocavam sob a proteção de uma família substituta, ora a mantinham sob a guarda provisória dos adotantes.
O ministro Marco Buzzi foi o relator do recurso e, em seu voto, pontuou que seria possível, desde o início da ação de adoção, o deferimento da guarda provisória do menor ao casal adotante, como medida alternativa à colocação em abrigo ou família substituta e como forma de resguardar sua proteção integral e seu melhor interesse.
Para o ministro, a permanência provisória da criança em instituição pública ou com pessoas com as quais não tinha qualquer grau de parentesco ou afinidade representou sua exposição ao risco de um dano irreversível: a possibilidade de novos episódios de rompimento de vínculos afetivos, dos quais poderiam resultar abalos psicológicos.
A decisão do STJ, no entanto, não reflete o entendimento de todos os integrantes da magistratura sul-mato-grossense. Para a Desa Elizabete Anache, que responde pela Coordenadoria da Infância e Juventude de MS, algumas decisões do STJ acabam fortalecendo a adoção feita de forma irregular, sem que os adotantes se preparem adequadamente, se inscrevam e aguardem sua vez na fila.
No entender da magistrada, nessas situações em que há precipitação, muitas vezes, pessoas sem o perfil adequado acabam adotando em uma atitude que pode refletir prejuízo para a criança. Ela destacou que a adoção é uma decisão irrevogável, irretratável, e deve ser bem refletida e muito bem preparada antes de ser efetivada.
“E nesses casos de adoção direcionada a mãe biológica entrega a criança a quem ela quiser, sem nenhum controle do Estado, o que pode resultar em brechas para venda de bebês, que é uma situação muito grave, por isso, a adoção dirigida tem que ser combatida”, garantiu a desembargadora.
Ela defende a necessidade do fortalecimento da adoção que obedeça aos critérios da lei e cita o caso de mãe biológica que não se sente preparada para criar o filho, devendo a entrega da criança ser realizada por meio do Poder Judiciário, permitindo que essa criança seja colocada nas mãos de alguém especialmente preparado para isso.
Contudo, Anache pondera que nesses casos específicos, em que o STJ decide com esse posicionamento, talvez exista alguma particularidade e que, por se tratar de processo em segredo de justiça, não se tenha acesso.
“Se a criança já ficou muito tempo sob os cuidados desses adotantes, por exemplo, seria muito ruim para ela ser afastada, quebrar os vínculos já criados, para reiniciar tudo novamente em outra família, totalmente estranha, com a qual ela não está acostumada, em um processo de adoção regular. O fator tempo é uma questão muito importante e acaba consolidando situações que se formaram de modo irregular”, completou.
A coordenadora da infância destaca ainda que para impedir que o tempo consolide situações irregulares é que o Estado, tão logo tome conhecimento das entregas irregulares, faça o acolhimento da criança – não sendo necessariamente em uma instituição. Ela aponta a possibilidade de a criança ser colocada em uma família acolhedora, que cuide temporariamente, enquanto seu destino é decidido definitivamente.
“Isso, no entanto, não afasta a conclusão de que a adoção dirigida deve ser combatida com firmeza porque, ao fim e ao cabo, representa uma burla ao sistema de adoção, além de abrir brecha até para a venda de bebês. No caso concreto, acredito que o tempo consolidou uma situação irregular”, concluiu.
A juíza Katy Braun do Prado, da Vara da Infância, da Adolescência e do Idoso da Capital, é outra a ter um entendimento diferente da decisão emitida pelo STJ. Ela aponta que a constituição federal estabelece que a adoção deve ser assistida pelo poder público. Assim, os pais que desejam entregar os filhos para adoção recebem atendimento das varas da infância para o amadurecimento desta decisão.
“Os parentes por eles indicados também são orientados e avaliados antes da entrega da criança para garantia de que se trata de uma família idônea. As demais pessoas que querem adotar devem se submeter aos trâmites legais, pois a prévia habilitação é importante para o êxito da adoção e o respeito à ordem cronológica das habilitações para entrega de crianças é expressão da igualdade entre os pretendentes. Entretanto, muitos adultos se aproveitam do decurso do tempo para criar vínculos com a criança e assim consagrar o “jeitinho brasileiro” na adoção. Sonho com o dia em que a adoção terá a crianças e não os adultos como foco central”, afirmou Katy.
O juiz Fernando Moreira, da comarca de Sidrolândia, que é vice-presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), reconhece aspectos positivos e negativos da decisão que privilegiou o vínculo afetivo entre os adotantes, a família natural e a criança, evitando-se o rompimento definitivo dos laços, o que ele acredita ocorrer nos processos de adoção.
“Certamente isso trará menos sofrimento à criança. Além disso, invocou conceitos muito caros ao IBDFAM, tais como o melhor interesse da criança e o reconhecimento da família eudemonista, o que demonstra a atuação do STJ na vanguarda do Direito das Famílias. Além disso, a jurisprudência do STJ vem desenhando, ao longo dos últimos anos, uma nova roupagem à adoção, deixando claro aos juristas que a função da adoção é dar uma família para a criança acolhida, e não o contrário”, disse Fernando.