1º DE JUNHO: juízes falam sobre o combate ao feminicídio
O dia 1º de junho em Mato Grosso do Sul, desde 2018, com a sanção da Lei nº 5.202, é considerado o Dia Estadual de Combate ao Feminicídio. A data lembra a morte da jovem Isis Caroline, ocorrida em 1º de junho de 2015 e tida como o primeiro caso de feminicídio registrado em MS, após a vigência da lei federal nº 13.104/2015, conhecida como Lei do Feminicídio.
A competência para julgar processos de feminicídio é das varas do tribunal do júri e, segundo a juíza Helena Alice Machado Coelho, que responde pela Coordenadoria Estadual da Mulher em MS, esse é um crime caracterizado pelo ódio contra o que é feminino e o mais triste: na maioria dos casos é cometido na frente de crianças, filhos da vítima.
“Como se percebe que é um crime de ódio? Reiteração de golpes, geralmente com mais de 20 facadas, sempre na região do tórax, do rosto da mulher, que são símbolos femininos da vítima; enfim, são crimes chocantes em razão do contexto: dentro de casa, na presença dos filhos e com muito ódio”, explicou.
Helena destaca que sempre que se fala em feminicídio é necessário pensar em uma escalada: a vítima já sofreu ameaça, lesão, vias de fato, e o feminicídio é o ápice dessa violência sofrida. “Por isso é tão importante combater a violência doméstica desde a primeira ameaça. Estatisticamente, quando a vítima tem medida protetiva reduz drasticamente a possibilidade de feminicídio. O dado não é só de MS, mas nacional, pois de 80% a 90% das vítimas de feminicídio nunca pediu medida protetiva, nunca foi a uma delegacia relatar a violência sofrida. A medida protetiva é muito efetiva e salva vidas”, completou a juíza.
O juiz Walter Arthur Alge Netto, de Nova Andradina, aponta que a tipificação do feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu apenas em 2015 e antes disso já havia trabalhado em inúmeros processos envolvendo violência contra mulheres. Entretanto, o caso mais marcante no qual atuou foi justamente o primeiro caso de feminicídio levado a julgamento pelo Tribunal do Júri daquela comarca.
“Crime bárbaro, de grande repercussão e praticado justamente quando a vítima procurava o sistema de justiça. Não foi possível realizar a sessão no edifício do fórum, uma vez que aproximadamente 300 pessoas acompanharam o julgamento. O julgamento foi realizado no plenário da Câmara Municipal, durou 15 horas e o plenário, com capacidade para 360 pessoas, ficou quase lotado”, lembra o juiz.
Para o juiz Francisco Soliman, de Costa Rica, trabalhar em casos dessa natureza é sempre impactante, dada a gravidade do fato. Entendendo ser difícil destacar um único caso que tenha presidido o julgamento, ela ressalta um em que o homem matou a mulher em um evento público (festa), no dia do aniversário dela, com golpes de canivete que a degolaram, enquanto ela suplicava pela vida, dizendo que o amava.
Lembrou ainda de um feminicídio em que o homem matou a mulher com mais de 17 golpes de machadinha, em plena via pública, em frente ao filho adolescente, que tentava impedir a conduta do pai, e de outro em que o homem descumpriu medida protetiva de urgência, raptou a mulher, colocando-a em cárcere privado, estuprou-a, e no dia seguinte, após liberá-la, foi até a residência em que ela estava e, com golpes de facão atingiu-a diversas vezes, somente não matando a vítima por circunstâncias alheias, entretanto, a vítima, ainda jovem, perdeu o movimento de ambas as mãos permanentemente, pois estas foram atingidas enquanto ela se defendia.
“A similaridade em todos esses trágicos episódios é que o motivo destes crimes estava relacionado ao inconformismo do homem com o término da relação”, afirmou Soliman.
Com tantas informações e ações adotadas para se evitar esse crime, por que ainda convivemos com tantos casos de feminicídio? Helena Alice aponta que o feminicídio geralmente envolve parceiros íntimos (marido e mulher) ou ex-companheiros, e é praticado na maioria das vezes na presença de crianças.
“Existem estudos que indicam que cada feminicídio deixa dois órfãos. Independente de ser família de réu ou da vítima, este tipo de crime destrói várias vidas. O TJMS tem um projeto muito importante para esses casos, que é o Acolhida, direcionado para as vítimas diretas, como os filhos que presenciam o feminicídio”, completa.
No entender de Walter Arthur, a atividade cotidiana revela que, a despeito da ampliação das informações e constantes campanhas sobre a violência de gênero, são necessárias políticas públicas eficientes na busca de proteção desse público mais vulnerável. Ele defende que apenas a transformação da sociedade, ainda alicerçada em balizas patriarcais, poderá fazer reduzir o número de delitos dessa natureza.
“Há uma cultura que normaliza os comportamentos violentos contra mulheres. É muito comum ouvirmos que o autor do crime é trabalhador e praticou o fato em razão de uma conduta atribuída à mulher, culpabilizando-a. A sociedade tem dificuldade de entender que o fato de um homem ser trabalhador não o impede de praticar um crime, isso tudo em razão da estrutura social ainda vigente. O Direito Penal, isoladamente, portanto, não é suficiente com resposta. É preciso transformar o pensamento coletivo”.
O juiz de Nova Andradina lembra também que, além da vida da vítima, comumente esta deixa filhos advindos da união com o autor dos fatos e esses perdem a mãe e o pai ao mesmo tempo, por isso, para ele, os danos para crianças e adolescentes que vivenciam a violência doméstica são imensuráveis. Atualmente tramitam na comarca dois casos de feminicídios: um tentado e outro consumado.
Francisco Soliman acredita que há uma questão cultural que influencia essa situação. Ele explica que infelizmente convive-se em uma sociedade marcada pelo machismo e pelo patriarcalismo, que traduzem um desequilíbrio de forças, marcantemente, no ambiente doméstico, com certa naturalização de que o homem tem predominância em relação à mulher.
Soliman cita a Coordenadoria da Mulher de MS que, em sua visão, realiza um trabalho impecável no sentido de fomentar ações visando prevenir e coibir a violência de gênero, notadamente em face da mulher no âmbito doméstico.
“Quando a mulher se liberta do cenário opressor a que está submetida, alguns homens não suportam, sentem o orgulho ferido, e covardemente agridem a mulher; e nos casos mais graves, praticam o feminicídio. Não há como erradicar essa situação, no entanto, cada vez mais devem ser adotadas medidas e programas visando reduzir o número de casos, e isso passa, a meu ver, pela educação, levando o conhecimento às escolas, à sociedade em geral, e pela construção de políticas públicas locais efetivas que propiciem a necessária virada cultural”, esclareceu.
No momento, tramitam em Costa Rica cinco casos de feminicídio consumado ou tentado com réus presos preventivamente, aguardando julgamento. No último ano, a justiça acompanhou outros feminicídios que não ensejaram processos, afinal, o autor suicidou-se. Além disso, estão em tramitação cerca de 200 ações penais envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo que somente em 2022 (01/02/22 a 31/05/22), foram concedidas 77 medidas protetivas de urgência solicitadas por mulheres.
Quais pontos poderiam ser atacados para que, ao menos, seja possível reduzir o alto índice de feminicídios em MS? Walter Arhtur defende a ampliação de campanhas educativas sobre violência doméstica e familiar, a exemplo das capitaneadas pelo Coordenadoria da Mulher do TJMS, e especialmente o trabalho direcionado não só às mulheres, com esclarecimento de seus direitos e serviços disponíveis, mas também com o público masculino, pois este é quem deve compreender que não há mais espaço para que a mulher seja submetida às mais variadas formas de violência única e exclusivamente pelo fato de ser mulher.
O juiz Soliman, que será palestrante em um evento direcionado para o público masculino, no Dia Estadual de Combate ao Feminicídio, pensa que é necessário uma mudança de cultura, em que o respeito às diferenças, às liberdades individuais, enfim, aos direitos humanos, seja a tônica. Para ele, mostra-se imperioso que o Estado estabeleça políticas públicas efetivas nos âmbitos da educação, da saúde e da assistência social, mediante atuação preventiva. Somente a ação repressiva, mesmo com severa punição aos agressores, não resolverá o problema.
“Trata-se de uma iniciativa do município de Costa Rica visando levar informação e orientação aos homens, os quais, muitas vezes, desconhecem o conceito de violência doméstica, as formas em que ela se apresenta, as consequências jurídicas decorrentes, e até mesmo como se portar diante de uma medida protetiva de urgência que lhes impõe restrições. Há uma equivocada compreensão de que violência contra a mulher em ambiente doméstico é apenas agressão física, além de uma cultura que continua naturalizando a predominância masculina no âmbito do lar. É preciso desconstruir esses mitos, e assim como se trabalha com a necessária orientação à mulher, penso que também os homens devem ser esclarecidos de seu fundamental papel para a mudança desta triste realidade que atormenta a sociedade”, finalizou.