Magistrado relembra fatos de MS e homenageia juízes e advogados
Era mês de junho, lá pelos idos tempos de l.963, na cidade de Ponta Porã, hoje Estado de Mato Grosso do Sul.
Durante a noite, o frio obrigava com que as pessoas se recolhessem mais cedo e ao amanhecer deixavam suas casas mais tarde, ou seja, quando o sol já aparecia no alto projetando seus raios sobre a grama das ruas sem calçamento para, aos poucos, derreter a geada que formava sobre ela uma grossa camada de gelo. Algumas pessoas tomavam chimarrão ainda enroladas nas cobertas ou nos “ponchos” deixando que o sol as ajudassem no aquecimento do corpo para, então, tomarem rumo do trabalho. Foi nesse cenário que se passou nossa estória, narrando o furto do Jeep Gurgel, popularmente chamado de “candango”, cujo proprietário era o conhecido e popular Juiz Humberto Neves, então titular daquela Comarca. Pessoa de todos conhecida, tanto do lado brasileiro, como do lado paraguaio da fronteira, separada pela Avenida Internacional, respeitado por suas decisões quase sempre acertadas, sem muito conteúdo jurídico mas de um bom censo que fazia inveja ao mais sábio dos juristas.
O doutor Humberto residia na Avenida Brasil, na frente da vila militar, nas proximidades onde hoje fica a revenda da Fiat. Era um homem incomum, cumprimentava a todos como se deles fosse íntimo. Assim era com os advogados, com os funcionários do Judiciário e com o povo em geral. Era, portanto, um Juiz perfeitamente integrado na sociedade onde vivia.
Naquela manhã, havia acordado mais tarde, tomou seu café e saiu para frente de sua casa, como era de seu costume e ali permaneceu por algum tempo tomando o calor do sol, sempre cumprimentando as pessoas que por ali passavam . Ouvia o barulho dos soldados no quartel do 11º RC que ficava por traz da vila militar, onde o corneteiro dava o sinal indicando a chegada de seu comandante, um homem alto e forte, também respeitado e admirado pela comunidade, não só pelo nome singular como era chamado, mas porque o identificava com o povo guarani – “Coronel Sapucaia”.
De repente, um carro estaciona quase no portão de sua casa e dele desce um advogado que mais cedo tinha acordado e já estava se dirigindo para o escritório onde alguns clientes já o aguardavam para tratar de um inventário. Era o Doutor João Freire, conhecido advogado da região, pessoa de extremada honestidade, portadora de invejável saber jurídico e que servia de exemplo para os mais jovens que iniciavam na profissão. Para ele o advogado era o primeiro juiz da causa. Se o cliente não tinha razão era o primeiro a sentenciar, ainda que isso significasse não receber honorários, especialista em inventário, divisão e demarcação de terras, desde que não houvesse litígio, muitas vezes chegava a abandonar a causa quando se tornava litigiosa.
Depois de conversarem por algum tempo, ofereceu-lhe uma carona, já que seu escritório ficava ao lado de onde o digno magistrado exercia seu ofício, além de que, com isso economizaria o combustível de seu “candango”. Pronto, o magistrado aceitou a carona e ambos se dirigiram para o Tabelionato de Notas do 3º Ofício, cujo titular era o conhecido notário Napoleão, onde em anexo funcionava a escrivaninha cível e criminal da Comarca, na Avenida Brasil, esquina com a Rua Tiradentes, de frente ao Banco do Brasil.
Quando ali chegaram, já lhe estava esperando o escrevente judicial Dorvalino, responsável pelos processos cíveis e criminais e José Carpes, conhecido e respeitado titular do Cartório de Registros de Imóveis daquela Comarca.
Dorvalino, homem de poucas palavras era uma espécie de assessor do juiz. Nada chegava ao magistrado, sem antes passar por ele, encarregado de uma análise prévia das petições que eram protocoladas. Na verdade, era o terror dos novos advogados, porque, se a petição não estivesse rigorosamente dentro do que ele achasse correto, devolvia a seu subscritor dizendo: “volte para a faculdade” ou “pergunte para um colega mais velho, como se elabora uma petição inicial”. Trazia consigo um processo de “habeas corpus”, pelo qual o impetrante, um jovem advogado, reclamava o restabelecimento da liberdade de ir e vir de um cidadão acusado de ter praticado um crime de homicídio.
O oficial do Registro de Imóveis, José Carpes, suscitava uma dúvida sobre o registro de uma escritura lavrada as notas do 2º Tabelionato do Município de Amambai, cujo titular Algacir Pissini, pai do brilhante advogado Fernando Pissini, havia lavrado sem o recolhimento dos impostos devidos, o que era permitido pela legislação daquela época. José Carpes, adiantado no tempo e no espaço, entendia, como é hoje, que a lavratura da escritura deveria preceder do recolhimento dos impostos, a fim de constar no corpo da mesma o número das guias de recolhimento. Essa era a dúvida posta.
No primeiro caso era fácil, não exigia consulta, a final era matéria constitucional. Como o paciente não tinha sido preso em flagrante e muito menos por ordem escrita de autoridade judiciária, concedeu a ordem determinando fosse expedido o alvará de soltura para restabelecer a liberdade individual violada e, ainda de quebra, condenou o delegado de polícia no pagamento das custas processuais.
Logo em seguida, passou a examinar a dúvida suscitada pelo Oficial de Registros de Imóveis- José Carpes, baixou de sua estante uma coleção de Pontes de Miranda e outra de Walter Ceneviva e já estava convencido de que efetivamente era o caso de julgar procedente a dúvida e determinar que fosse recolhido o ITBI, quando se deu conta de que já passava do meio dia. Com toda paciência marcou no livro as lições do velho professor Pontes de Miranda e deixou aberto o livro de Walter Ceneviva, despediu-se de seus funcionários, recomendando para que não desmarcassem o livro e deixassem o processo no lugar onde estava, pois pretendida decidir assim que voltasse do seu almoço.
Sem muita pressa, deixou sua sala e dirigindo-se para o local onde costumava estacionar seu “candango”, como era conhecido seu Jeep Gurgel, um utilitário de fabricação brasileira de grande aceitação para rodar em estradas não asfaltadas como eram as da região, e, qual não foi a sua surpresa ao perceber que ali não se encontrava o mesmo. Voltou rápido para o interior da sala onde ainda se encontravam os funcionários, perguntando se tinham visto alguém pegando seu carro e diante da negativa, não teve dúvidas, seu “candango” havia sido furtado.
Ligou para o delegado e imediatamente comunicou as autoridades paraguaias, pedindo que fossem tomadas providências no sentido de ser apreendido a “res furtiva” e autuado em flagrante o indigitado autor do furto. Naquele tempo a ligação telefônica era solicitada para a telefonista e ela se encarregava de espalhar a notícia. Não perdeu tempo, ao lamber a prosa do juiz com o delegado, destravou a metralhadora e mandou bala, ligando para as rádios, jornais e também para todas as comadres daquela cidade e das vizinhas do lado brasileiro e paraguaio. Pronto, graças a telefonista o fato criminoso já era de domínio público.
Como se tratava do furto do “candango do Juiz”, logo o povo, tanto do lado brasileiro como do lado paraguaio, estava envolvido nas buscas. Foi um verdadeiro alvoroço, até o Exército, que havia destacado várias patrulhas ambulantes para combater o contrabando de café, recomendava seus integrantes, no sentido de que vasculhassem as estradas da fronteira, buscando encontrar o “candango” do Juiz, afinal, como disse, se tratava de uma pessoa que mantinha ótimas relações com o alto comando do 11º Regimento de Cavalaria.
Notícias chegavam de todos os lados, dando conta de que pessoas tinham visto passar o carro furtado. Algumas diziam que o mesmo já estava chegando em Assunção, capital do Paraguai, outras diziam que tinham visto passar em direção ao Estado do Paraná, já lá pelas bandas de Guaíra, perto de onde hoje fica Mundo Novo.
De repente, um aviso: o carro do juiz havia sido visto indo em direção a cidade de Amambai. Iniciou-se, então, uma perseguição, uma verdadeira caçada ao ousado meliante, autor do furto. Na frente seguiam as três patrulhas ambulantes do Exército, depois a polícia civil, seguido da Polícia Militar e mais atrás o povo que se organizou para encontrar o “candango do juiz”, afinal isso nunca havia acontecido antes.
Era um verdadeiro absurdo, uma audácia sem precedente, o fato de alguém furtar o carro e logo aquele de propriedade do Juiz da Comarca. Conseguiram alcançar o suspeito já chegando na ponte sobre o rio Amambai, quando perceberam o engano: Tratava-se de um “candango” idêntico que era de propriedade do Doutor Hélio Capilé, conhecido advogado que se dirigia com destino à cidade de Amambai, onde pretendia visitar um cliente importante.
Desfeito o engano, o Doutor Capilé, reiniciou a sua viagem e a caravana formada pelos militares, policiais civis e o povo, frustrados, voltaram para Ponta Porã, onde o Juiz os aguardava ansioso para saber quem tivera a audácia de furtar o seu estimado “candango”.
Por outro lado, na entrada da cidade, mais ou menos onde hoje fica o aeroporto, se aglomeravam as pessoas de todos os tipos e nacionalidades, umas por simples curiosidade e outras pela vontade incontida de fazer justiça com as próprias mãos, todas organizadas no sentido de “lincharem” o autor do furto. Não haveria clemência, estavam dispostos a “resgatar o ladrão”, antes que a caravana chegasse à Delegacia.
O indigitado seria levado até a ponte do córrego São João, saída para Dourados e ali seria executado, sem dó nem piedade, afinal, em Ponta Porã, nunca havia ocorrido um furto de automóvel. As pessoas eram acostumadas a deixar seus carros na rua com as chaves no contato, muitas vezes por vários dias enquanto viajavam para Dourados, Campo Grande ou Cuiabá e até mesmo para São Paulo. Quando regressavam, lá estava o seu carro, com todos os seus acessórios.
Onde se viu alguém se encharcar de tamanha audácia e furtar o carro do Juiz, pessoa extremamente respeitada, ainda mais sob a luz do dia e da frente de seu local de trabalho, isso era demais, o povo não aceitava tamanho desaforo.
E qual não foi a surpresa, todos ficaram frustrados, a perseguição havia se tornado infrutífera, eis que o “candango” perseguido, não era o do Juiz e sim do advogado Hélio Capilé. Foi como se tivessem jogado “um balde de água fria” nos afoitos e pretensos justiceiros.
A noite foi chegando e o pobre do juiz, decepcionado com as buscas, novamente pegou uma carona e voltou para casa a fim de descansar, a final, o dia tinha sido de muitas emoções e o que é pior, havia perdido o seu meio de transporte, o “candango” como era chamado e que agora estaria fazendo alegria dos “amigos do alheio”, sabe se lá onde.
Ao chegar em sua casa, nem mesmo quis olhar para a garagem que agora deveria estar vazia e isso ia lhe machucar mais ainda. Tomou seu banho, como era de seu costume, jantou e foi deitar-se.
Não conseguia dormir, pensando, quem seria o autor de tamanha maldade, afinal havia aprendido com “Justiniano” que praticar justiça era dar a cada um o que lhe é devido. Logo ele, que já havia dedicado grande parte de sua vida praticando esse conceito, seria vítima de alguém que lhe subtraia o que lhe era devido.
- Vou mudar, pensava ele, daqui para frente, não mais serei o Juiz bonzinho que sempre fui, vou assumir outra postura, arrumar um segurança, quem sabe requisitar um soldado da Polícia Militar para fazer a segurança no meu local de trabalho, vou comprar uma arma e ai desse ladrão de carros se aparecer na minha frente...então, veio o sono e dormiu.
Ao acordar, por volta das 8:30 horas, tomou seu café e como sempre fazia, entrou na garagem e qual não foi a sua surpresa. Ali estava o seu “candango”, limpinho bem do jeito que havia deixado no dia anterior ao suposto furto.
Foi ai que lhe ocorreu, havia pegado uma carona com o Doutor João Freire e deixado seu carro na garagem. Que vergonha, como encarar as autoridades brasileiras, paraguaias, os advogados, os amigos e os funcionários da justiça, como dizer a eles que tudo não havia passado de um lamentável engano. Essa decisão sim era difícil. Não tinha como consultar Nelson Hungria e muito menos a sua coleção de Pontes de Miranda e Walter Ceneviva. Era preciso consultar um sábio, um amigo que antes de tudo fosse capaz de guardar o segredo.
Então, antes de ir para o seu local de trabalho, resolveu passar pelo armazém esperança, confidenciar ao seu amigo Ezzat a quem pediria um conselho: divulgar o engano ou manter a versão sobre o suposto furto.
Mal estacionou seu “candango” na frente daquele estabelecimento comercial e já foi sendo recebido por seu amigo, pessoa experiente, vivida, acostumada aos grandes prélios da vida, muito esperto e que logo compreendeu a angustia do velho juiz.
O armazém esperança ficava ao lado da revenda da Wolkswagen, onde, se vendia de tudo, louças, ferramentas, arame liso, farpado e até produtos alimentícios. Era um grande centro comercial e estava bem localizado, principalmente porque a poucos metros, da Avenida Marechal Floriano, onde ficava o “Café Mafucci”, quase em frente do “Urca bar”, local próprio para tomar um cafezinho e bater um bom papo.
Para ali se dirigiram e no trajeto, o Doutor Humberto falou sobre a difícil decisão que haveria de tomar. Entraram no café e já estavam tomando o cafezinho, gentilmente servido por uma jovem menina, sobrinha do proprietário do estabelecimento, cuja jovem se chamava Maria Bonita e que, posteriormente, veio a casar-se com seu amigo Ezzat, quando foram literalmente cercados por populares que perguntavam ao Doutor Humberto como havia recuperado o veículo furtado e quem era o odiado autor do mal feito. Seu amigo se adiantou com a resposta: “o ladrão ficou com medo e devolveu o carro do doutor e para compensar o dia de uso entregou lavado e polido”. O juiz ainda conversou alguns minutos, agradeceu o cafezinho e o sábio conselho recebido e se dirigiu para o Cartório do Napoleão onde despachava o expediente forense.
Ali já estavam esperando, o delegado, o comandante da Polícia Militar, os repórteres das rádios brasileiras, paraguaias, jornalistas, autoridades policiais para logo em seguida chegar o Coronel Sapucaia, comandante do 11º RC, que se fazia acompanhar do Coronel Miranda, comandante da unidade militar de Pedro Juan Cabalero- Py.
Todos queriam saber como havia recuperado a “res furtiva”, se o autor daquele hediondo crime, havia sido preso e identificado. Não teve dúvida a lição que recebera de seu amigo não estava escrita em nenhum livro, mas era extremamente sábia, a final um juiz não cometia erros e nem enganos, portanto assumindo um ar de valente, repetiu:
“ Pois não há de crer que o ladrão, ao ficar sabendo que o carro era do juiz, teve medo das autoridades e aproveitando-se do silêncio da noite, resolveu devolver o “candango” na garagem e ainda devolveu lavado e polido para ficar mais lindo”.
Éta, ladrãozinho sem vergonha.
Todos ficaram satisfeitos, sendo a notícia divulgada nas rádios paraguaias, brasileiras e no outro dia estampada na primeira página do Jornal da Praça: “ladrão não suportou a pressão das autoridades e devolveu o carro do juiz.”
AUTOR: Luiz Carlos Saldanha Rodrigues
Juiz de Direito Aposentado e advogado militante
Publicado em: http://www.midiamax.com.br/pontodevista/?pon_id=1001