A constitucionalidade do parágrafo 4º do artigo 33 da lei 11.343/06
José Henrique Kaster Franco
Magistrado-MS Doutorando em Direito pela UMSA ÍBuenos Aires. Argentina) Especialista
em Ciências Penais Professor Universitário
Circula nos meios jurídicos artigo de Fernando Capez' no qual defende a inconstitucionalidade do parágrafo 4º do art. 33 da Lei 11.343/Oé‘ por afronta à proporcionalidade, pois apenaria com menos intensidade criminosos acusados por crimes hediondos, concedendo-lhes benefício não estendido aos criminosos comuns.
Segundo Capez, "um traficante primário e que seja portador de bons antecedentes contará com privilégios do qual não dispõe nenhum autor ou partícipe de crime de menor gravidade, também primário e portador de bons antecedentes. Basta verificar que, na sistemática do Código Penal, os bons antecedentes constituem circunstâncias judiciais previstas no art. 59, caput, e, por essa razão, incidem sobre a primeira fase da dosimetria da pena, não permitindo, em hipótese alguma, que a sanção seja aplicada abaixo do piso, consoante dispõe o seu inciso
Não obstante as louváveis preocupações do jurista, o princípio da proporcionalidade não é comumente utilizado como elemento argumentativo para elevar penas.
' Revista Consulex (ano XII – nº 266, de l 5.02.2008)
' 5 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dais terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.Na história recente do Direito, parece ter sido Beccaria¿, em 1764, o primeiro a se valer da proporcionalidade. Não para elevar penas, mas para minimizar os desmandos dos Estados absolutos.
De lá para cá, em quase 250 anos, o princípio da proporcionalidade passou por considerável evolução. Por exemplo, o art. 8º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 17B9, fruto da Revolução Francesa, e que serviu de base aos ordenamentos jurídicos de quase todos os países democráticos, previa, em seu artigo 8º, que “a lei só pode estabelecer penas estritas e evidentemente necessárias"'.
Flávia D’Urso‘, em substanciosa monografia sobre o tema, relata que esse caminho de evolução passa pelo Conselho de Estado da França, nos julgamentos dos recours pour excés de pouvoir (recursos por excesso de poder). A jurisprudência francesa acaba influenciando a Alemanha, que faz do princípio da proporcionalidade um valor constitucional. Karl Larenz‘ acrescenta que em janeiro de 1958 o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, no caso Lúth, adotou, pela primeira vez, a proporcionalidade como fator de ponderação e, daí em diante, "é de fonte tedesca, por intermédio, igualmente, do Tribunal Constitucional Alemão, na esteira de se ter assimilado a preocupação com os direitos fundamentais vislumbrada na Lei Fundamental, o reconhecimento da necessidade prática de se controlar as restrições legais e judiciais a esses direitos no que se refere a três aspectos; necessidade (Erforderiichkeit), adequação (Geeigneitheit) e proporcionalidade em sentido estrito (Verhãltnismcissigkeit). O Direito Constitucional Alemão confere ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso qualidade de norma não escrita, derivada do Estado de Direito".
Desde a Alemanha o princípio da proporcionalidade ganhou o mundo, inclusive o Brasil.
Necessário. pois, para resumir, sublinhar a principal função do princípio da proporcionalidade; fator limitador da restrição a direitos fundamentais. Em outras
BECCARIA, Cesare. Dos Deliios e das Penas. São Paulo. Ícone. 2003.
KOMPARAYO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva. 2007. p159
'D' URSO, Flávia. Princípio Constitucional da Proporcionalidade no Processo Penal. S ao Paulo: Afias, 2007, p.53
LARENS, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboc: Fundação Calovste Gulbekian, 1991
palavras, o princípio da proporcionalidade serve como limite à limitação de direitos fundamentais, isto é, é com base nele que se poderá verificar até que grau se poderá restringir a eficácia de um determinado princípio ou direito: ele, por conseguinte, "limita o cerceamento a direitos fundamentais", nas precisas palavras de Paulo Bonavides.
Outra função do princípio da proporcionalidade é a de ponderação, tão bem desenvolvida por Robert Alexy, catedrático da Universidade Christian Albrecht de Kiel, Alemanha, que, fartamente influenciado pela filosofia Kantiana, desenvolveu, sobremaneira, a problemática da principiologia'.
Seja na função de limitação, seja na de ponderação, o princípio da proporcionalidade, repisa-se, não vem sendo utilizado como expediente de argumentação teórica para elevar penas, em 250 anos de evolução’.
Não bastasse a inusitada base teórica, há outros pontos a serem examinados.
Primeiro, a Lei 11.343/06 não se valeu somente de critérios similares ao do art. 59 do Código Penal, mas de quatro elementos: primariedade; bons antecedentes, dedicação a atividades criminosas e participação em organização criminosa (art. 33, § 4º).
E mesmo se tivesse utilizado dos mesmos critérios – e poderia tê-la feito, pois traz um micro-sistema com características particulares –a verdade é que o legislador, em atenção à Constituição, criou uma nova causa de diminuição da pena, o que, obviamente, autoriza que o juiz desça aquém do piso mínimo previsto no preceito secundário da norma penal. E já havia feito o mesmo, por exemplo, com o furto privilegiado: art. 155, g 2º, do CP; com a apropriação indébita: art. 170 do CP; estelionato: art. 171, § 1º, do CP; receptação culposa: art. 180, § 5º, do CP; proteção de vítimas e testemunhas: art. 13 da Lei 9.807/99.
BONAYIDES. Paulo. Curso de Direita Constitucional. São Pauto: Malheiros. 2003. p. 424
ALEXY, Robert Ei Concepio y la Vaiidez dei Derecho Buenos Aires: Gedira Editorial, 1992; Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid Centro de Estúdios Políticos y Consfitucionales. 2007
9 Sobre a utilização da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente, vide FELDENS. Luciano
Direitos Fundamentais e Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
Usei a expressão “em atenção à Constituição” no parágrafo anterior para denotar que o legislador, ao diferenciar o traficante organizado (que obtém consideráveis lucros com a atividade e nela está definitivamente integrado) do "mula" ou "aviãozinho” Íaqueles sujeitos utilizados como mão-de-obra barata do tráfico o tez muito bem, porque tratou desigualmente os desiguais, e com isso levou em conta o Princípio da Igualdade Material, materializado no art. 5º, caput, e inciso I, da Constituição Federal.
Em síntese, seja porque o princípio da proporcionalidade não foi desenvolvido com o fim de elevar penas, seja porque o legislador apenas previu, constitucionalmente, mais uma causa de diminuição de pena, que autoriza a fixação abaixo do mínimo, seja, por fim, porque o legislador optou por tratar diferentemente pessoas diferentes, o art, 33, § 4º, da Lei 11.343/06, é absolutamente constitucional.
REREFENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. El Concepto y la Validez dei Derecho. Buenos Aires: Gedisa Editorial, 1992; Teoría de los Oerechos Fundamenta/es. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2007.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Ícone, 2003.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 424.
D’URSO, Flávia. Princípio Constitucional da Proporcionalidade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p.53.
FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
KOMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo; Saraiva, 2007, p159.
LARENS, Karl. Metodoíogia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997.